A reforma tributária iniciada pela Emenda Constitucional nº 132/2023, regulamentada pela Lei Complementar nº 214/2025, propõe um novo modelo de tributação sobre o consumo no Brasil, com a substituição de diversos tributos (ICMS, ISS, PIS, Cofins) pelo IBS e pela CBS.
Embora o discurso institucional esteja ancorado na promessa de simplificação e neutralidade, o novo sistema impõe mudanças estruturais no momento do impacto tributário nas operações de aquisição de bens e serviços, com efeitos imediatos sobre o fluxo de caixa e a estrutura de formação de preços das empresas.
Este artigo analisa os principais efeitos financeiros e operacionais decorrentes da tributação na entrada, com foco especial no custo de aquisição e na precificação das atividades econômicas no novo regime.
1. Do benefício fiscal à tributação integral: o que muda na entrada
No regime atual, muitas operações de aquisição são isentas, suspensas ou diferidas, e, em diversos casos, o crédito do tributo pode ser apropriado antes mesmo do pagamento. Com a entrada em vigor do IBS e da CBS, esse cenário muda substancialmente.
A LC nº 214/2025 estabelece que incidirão IBS e CBS sobre uma gama mais ampla de operações, incluindo:
- Locações e arrendamentos de bens;
- Comodatos com contrapartida econômica;
- Cessões de direitos e licenciamento de bens imateriais;
- Doações com benefício ao doador;
- Brindes e bonificações não vinculadas a nota fiscal de venda.
Além disso, benefícios como diferimento, isenção e alíquota zero passam a ser restritos e excepcionais, exigindo previsão expressa.
O resultado prático é que operações que antes não geravam desembolso tributário passarão a representar custo real na entrada, exigindo desembolso imediato e com menor margem de planejamento financeiro.
2. O crédito vinculado ao pagamento: uma nova disciplina para o fluxo de caixa
O artigo 47 da LC nº 214/2025 estabelece uma das regras mais relevantes da nova sistemática: o crédito de IBS e CBS só poderá ser apropriado após a extinção do débito, ou seja, em regra, após o pagamento da operação de aquisição.
Dessa forma, a lógica da não cumulatividade se mantém, mas com um impacto financeiro objetivo:
- O tributo é pago integralmente na aquisição, inclusive em contratos antes não tributados;
- Nas compras com pagamento parcelado, o crédito será apropriado em parcelas;
- O crédito só é registrado após a extinção da obrigação tributária (pagamento, compensação ou outra forma legal);
- Não há estorno de crédito nas saídas com alíquota zero ou reduzida, salvo previsão específica (art. 47, §10), o que preserva o direito à compensação, mas não alivia o caixa no curto prazo.
A consequência direta é um deslocamento do impacto tributário para a etapa de entrada, o que compromete o capital de giro e reduz a liquidez disponível para financiar a operação.
3. Impacto sobre o capital de giro e riscos operacionais
Empresas que operam com grandes volumes de compras, estoques estratégicos ou contratos de serviços contínuos sofrerão impactos mais evidentes:
- A formação de estoque passa a ser tributada integralmente na entrada, exigindo mais caixa e/ou financiamento bancário;
- Setores com saídas desoneradas (ex.: exportações, alimentos da cesta básica) terão crédito acumulado, cujo aproveitamento dependerá de futuras vendas tributadas ou compensações;
- Contratos de leasing, locação de máquinas, tecnologia licenciada ou serviços de terceiros terão seu custo majorado, com impacto direto no fluxo de pagamentos mensais.
Para setores como construção civil, agronegócio, indústria de transformação e varejo, o efeito pode ser significativo e exigirá revisão das estratégias de compras, prazos de pagamento e estrutura de financiamento.
Exemplo de Impacto no Fluxo de Caixa – Aquisição com Tributação de IBS e CBS
Arrendamento entre duas pessoas jurídicas no Lucro Presumido.
Descrição | Situação Atual (2025) | Situação com IBS/CBS (Pós-Reforma) |
Tipo de operação | Arrendamento | Idem |
Valor do contrato mensal | R$ 200.000,00 + tributos | R$ 200.000,00 + tributos |
Tributação incidente | SEM ICMS ou ISS / PIS e COFINS – 3.65% | IBS + CBS (estimado: 28%) |
Valor dos tributos | R$ 7.300,00 | R$ 56.000,00 |
Desembolso total na entrada | R$ 207.300,00 | R$ 256.000,00 |
Crédito tributário disponível | Não aplicável | R$ 56.000,00 (após extinção do débito) |
Tempo para aproveitamento do crédito | Não aplicável | Após pagamento da obrigação fiscal |
Impacto imediato no caixa | Nenhum | Desembolso de R$ 48.700,00 a mais |
Necessidade adicional de capital de giro | Não | Sim – para cobrir tributo na entrada |
Resíduo Tributário | R$ 7.300,00 (custo) | R$ 0 |
4. Formação de preço e estrutura de custos no novo regime
Um ponto muitas vezes negligenciado é o reflexo da reforma sobre a formação do preço final do produto ou serviço. O aumento do custo de aquisição, causado pela nova incidência tributária sobre operações antes isentas ou diferidas, alterará a base de cálculo da precificação empresarial.
Alguns elementos críticos a serem considerados:
a) Aumento do custo operacional líquido
O custo total da atividade passa a incluir tributos sobre itens que anteriormente não impactavam o caixa, como arrendamentos, serviços acessórios e cessões de direitos. Isso aumenta o custo marginal da produção ou prestação, mesmo quando o crédito está garantido.
b) Defasagem entre o desembolso e a apropriação do crédito
Ainda que o crédito seja assegurado no novo regime, o efeito financeiro no curto prazo é de aumento de custo, pois o crédito só será reconhecido após a extinção do débito.
c) Risco de acúmulo de crédito e pressão sobre margens
Em setores com saídas desoneradas ou beneficiadas com alíquota reduzida, os créditos apropriados na aquisição não encontram débito correspondente para compensação, gerando saldo credor, que pode afetar a lucratividade e dificultar o repasse de preços, se o prazo para ressarcimento for alongado.
d) Necessidade de revisão da estrutura de mark-up
Empresas precisarão recalcular seus preços de venda considerando o custo real da operação no novo regime, inclusive com impactos sobre contratos de longo prazo, licitações públicas e margens fixadas por acordos comerciais.
5. Medidas recomendadas para a transição
Diante desse novo cenário, algumas ações são recomendadas ainda em 2025:
- Mapeamento detalhado das operações de entrada atualmente desoneradas que passarão a ser tributadas;
- Simulação do novo custo de aquisição, considerando a alíquota efetiva de IBS e CBS;
- Análise da estrutura de capital de giro e capacidade de absorver o novo custo de entrada;
- Revisão da política de preços e renegociação de contratos com clientes e fornecedores;
- Integração entre as áreas tributária, financeira e de suprimentos para ajustar o ciclo operacional ao novo modelo.
Conclusão
A reforma tributária propõe um modelo mais neutro e técnico, eliminando distorções históricas como a cumulatividade parcial e resíduos tributários que se incorporavam ao custo final das operações. Isso é um avanço, especialmente para empresas que operam em cadeias longas ou com margens comprimidas.
No entanto, esse novo modelo desloca o impacto financeiro para o momento da aquisição, exigindo que o tributo seja pago na entrada, inclusive em operações antes não oneradas. O crédito existe e é integral, mas sua apropriação está condicionada ao pagamento, conforme dispõe o art. 47 da LC nº 214/2025.
O exemplo prático com contrato de arrendamento mostra com clareza: eliminamos o resíduo tributário, mas pressionamos o caixa em R$ 48.700,00 a mais por mês. A gestão precisa deixar de enxergar apenas a carga tributária final e passar a tratar o fluxo de caixa tributário como um componente estratégico.
Mais do que uma reforma tributária, estamos diante de uma mudança estrutural na forma de financiar a operação das empresas.