Primeiro, você sabe o que é uma API?
API é a sigla para Application Programming Interface, ou Interface de Programação de Aplicações. Em termos simples, uma API permite que diferentes sistemas de software “conversem” entre si de forma automatizada e segura. No contexto da reforma tributária, isso significa permitir que os sistemas de empresas, escritórios contábeis e da própria administração pública troquem informações fiscais de maneira eficiente, precisa e em tempo real.
Essas interfaces são a espinha dorsal da nova lógica fiscal baseada no Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e na Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS). Elas serão utilizadas para emissão e recepção de documentos fiscais eletrônicos, apuração de créditos, comunicação com a RFB e o Comitê Gestor do IBS, entre outras funções críticas.
Dito isso, surge a pergunta inevitável: quem arcará com os custos dessa infraestrutura tecnológica?
O Serpro já adiantou que algumas APIs básicas serão gratuitas, porém com limitações de consulta. O restante poderá vir acompanhado de custos adicionais, especialmente para empresas que demandam acesso em larga escala para a transmissão de dados fiscais em tempo real. E é aí que surge a tensão entre eficiência operacional e justiça fiscal.
De um lado, a administração tributária precisa garantir a segurança, disponibilidade e integridade dos dados transmitidos. De outro, o contribuinte precisa de previsibilidade, acesso contínuo e gratuito aos seus próprios dados, como já reivindicado por entidades como a ABES, CFC, Fenacon e outras, no Manifesto Setorial pela Justa Operacionalização da Reforma Tributária.
Cobrar pelo uso pleno das APIs equivale, em essência, a transformar um dever público em uma prestação onerosa. Isso contraria o espírito da própria reforma, que, segundo o §3º do art. 145 da Constituição, agora exige simplicidade, transparência e justiça tributária como princípios estruturantes.
Adicionalmente, a cobrança pelas APIs cria assimetrias competitivas. Grandes empresas, com mais recursos, poderão absorver esse custo e automatizar suas operações. Já os pequenos e médios contribuintes ficarão à mercê de sistemas mais manuais, o que aumenta o risco de erros, penalidades e insegurança jurídica.
Não se trata apenas de tecnologia. Trata-se de equidade fiscal.
A digitalização do sistema tributário é inevitável — e bem-vinda. Mas os meios tecnológicos de cumprimento das obrigações acessórias devem ser universais e acessíveis. O custo dessa estrutura não pode recair sobre o contribuinte. Afinal, não se cobra do cidadão pelo uso da estrada pública que o leva até a Receita Federal.
Portanto, se a reforma se propõe a construir um sistema mais justo, o acesso às APIs deve ser tratado como um direito — e não como um serviço tarifado. Cabe ao Estado assumir o protagonismo tecnológico e financeiro desta transformação. É o preço da cidadania fiscal.
Ainda assim, surge um ponto importante de reflexão: será que as empresas não poderiam — ou mesmo deveriam — compartilhar parte desse ônus, pelo bem do interesse público?
Afinal, todas se beneficiarão de um sistema tributário mais eficiente, com menor litigiosidade e mais segurança jurídica. Algumas já investem pesadamente em automação fiscal, e poderiam colaborar com soluções tecnológicas robustas que atendam ao ecossistema como um todo.
Mas aqui é necessário cautela. Colaboração não pode significar transferência de responsabilidade pública. O que está em jogo é o acesso a uma infraestrutura básica para cumprimento legal — algo que, por princípio, deve ser garantido pelo Estado, com recursos públicos. Especialmente porque a cobrança afeta de forma desproporcional os pequenos contribuintes, podendo aprofundar desigualdades operacionais.
Talvez o caminho esteja em buscar um modelo híbrido, com soluções privadas facultativas coexistindo com uma base pública mínima, gratuita e universal. Mas essa discussão precisa ser feita de forma transparente, democrática e com escuta ativa da sociedade e do setor produtivo.
Nesse sentido, o Manifesto Setorial pela Justa Operacionalização da Reforma Tributária faz contribuições relevantes. O documento sustenta que:
- o acesso às APIs é essencial para a integração dos sistemas e para a conformidade tributária;
- impor custos de acesso ou limitação de consultas compromete a escalabilidade do modelo e onera indevidamente o setor privado;
- o fornecimento e a manutenção desses recursos devem ser de responsabilidade do Estado, com recursos públicos já arrecadados;
- e que o cronograma de implementação deve prever um prazo mínimo de 12 meses após a disponibilização dos sistemas, para adaptação segura e eficaz.
O manifesto é claro: o sucesso da reforma exige não apenas leis bem elaboradas, mas também uma infraestrutura digital acessível, equânime e sustentada pelo poder público.
E você, o que pensa? O investimento na infraestrutura da reforma deve ser exclusivamente público ou pode — sob certas condições — ser compartilhado com o setor privado? O debate está em aberto. E é essencial.