A promulgação da Emenda Constitucional nº 132/2023 e a edição da Lei Complementar nº 214/2025 instituíram um novo regime tributário no Brasil. Com o fim progressivo do ICMS, ISS, PIS e Cofins, e a ascensão do IBS e da CBS, a lógica de apuração, responsabilização e estruturação tributária dos negócios empresariais foi profundamente alterada. Essa transformação não é apenas contábil — ela é jurídica. E impacta diretamente a forma como contratos devem ser concebidos, executados e geridos.
Se antes era possível confiar na estabilidade relativa das cláusulas tributárias, hoje a manutenção dessas mesmas cláusulas representa um risco direto à segurança contratual. A inércia pode resultar em perda de créditos, descumprimento de obrigações, desequilíbrio econômico e litígios fiscais ou civis, o que significa um aumento no custo da empresa.
Uma nova forma de tributar: por fora, no destino e mediante adimplência
O IBS e a CBS passam a ser calculados “por fora”, com alíquotas destacadas do preço. O preço contratual, portanto, precisa indicar com clareza se inclui ou não os tributos, e como será ajustado caso as alíquotas — compostas por União, estados e municípios — sejam alteradas.
Além disso, o local da incidência passa a ser o domicílio do adquirente, o que altera a competência tributária e obriga os contratos a refletirem essa nova lógica.
Por fim, e talvez mais disruptivo, o crédito fiscal só poderá ser apropriado quando o tributo for efetivamente pago pelo fornecedor. Isso significa que o simples recebimento da nota fiscal ou do bem não basta: se o tributo não for recolhido, o crédito do adquirente é glosado.
Isso exige cláusulas específicas de compliance tributário, nas quais o fornecedor se compromete a:
- pagar os tributos no prazo legal;
- comprovar o recolhimento;
- responsabilizar-se pelas perdas em caso de inadimplemento.
Essa obrigação precisa ser tratada como essencial, com previsão de retenção de valores, compensações e sanções contratuais.
Contratos em transição: dois sistemas, um só instrumento
Entre 2026 e 2032, conviveremos com dois regimes. O novo sistema será implementado progressivamente, enquanto o antigo ainda estará parcialmente em vigor. Isso exige contratos com cláusulas robustas de segregação de regimes, alocação de responsabilidades e ajuste automático de preços.
Não haverá espaço para contratos omissos ou genéricos. A convivência entre os regimes antigos e novos exige precisão técnica, com detalhamento de como os tributos serão apurados, creditados e repassados em cada fase da transição.
Fim dos incentivos pulverizados: o contrato deve refletir a nova política constitucional
A EC 132 encerra, de forma estrutural, o espaço para concessão ampla e dispersa de benefícios fiscais. A regra passa a ser a uniformidade nacional, com exceção da Zona Franca de Manaus e outros regimes previstos expressamente na Constituição.
Isso significa que contratos que hoje se amparam em isenções estaduais, regimes especiais ou créditos presumidos perderão sua base legal — e podem tornar-se economicamente inviáveis.
É indispensável prever:
- mecanismos de repasse de economia fiscal legalmente assegurada;
- cláusulas de reequilíbrio automático em caso de extinção ou modificação de incentivos existentes;
- ajuste de margens, preços e prazos para manter o equilíbrio contratual sem benefício.
O tratamento contratual de incentivos deixa de ser uma vantagem negociada e passa a ser um aspecto técnico-constitucional da tributação nacional.
M&A e reorganizações societárias: o impacto da retirada dos incentivos fiscais no resultado da empresa-alvo
No atual sistema, muitos negócios fecham balanços com lucro apenas porque contam com incentivos fiscais — seja por meio de isenções estaduais, créditos presumidos ou regimes especiais de apuração. Esses benefícios, muitas vezes, não apenas reduzem a carga tributária, mas são estruturais para a viabilidade econômica da operação.
A reforma tributária muda esse cenário. Com a extinção progressiva dos tributos atuais e a centralização dos benefícios em normas constitucionais uniformes, a maioria dos incentivos fiscais deixará de existir. Isso afeta diretamente a capacidade de geração de caixa futura da empresa-alvo em processos de fusão, aquisição ou reorganização societária.
Para o adquirente, isso exige:
- identificar, na due diligence, quais componentes do lucro atual são estruturais e quais são puramente fiscais;
- exigir da empresa-alvo demonstrações financeiras ajustadas pela retirada dos incentivos, simulando o cenário tributário pós-reforma;
- prever cláusulas de ajuste de preço com base em metas de resultado líquido após o fim dos benefícios fiscais;
- incluir condições resolutivas ou mecanismos de earn-out vinculados à manutenção ou retirada dos incentivos no período de transição;
- estipular indenizações específicas por perdas de margem, lucro ou geração de caixa vinculadas à extinção de regimes fiscais identificados.
Mais do que nunca, será necessário separar “lucro operacional real” de “lucro por engenharia fiscal”. Sem essa separação clara e contratualizada, o adquirente poderá pagar por um resultado que não se sustentará no novo modelo tributário.
A cláusula de reequilíbrio não é mais uma salvaguarda. É uma exigência
Contratos que não contemplem uma cláusula de reequilíbrio robusta estarão estruturalmente vulneráveis. A dinâmica do novo sistema — com possíveis variações de alíquota, revogação de incentivos e deslocamento do local de incidência — exige que as partes estejam autorizadas, contratualmente, a renegociar termos econômicos em caso de desequilíbrio superveniente.
O reequilíbrio deve ser automático, técnico e limitado ao impacto real, mas não pode mais depender de mera “boa vontade”. O contrato precisa prever o mecanismo e os critérios com antecedência.
Operações hoje não tributadas: atenção redobrada para novos fatos geradores
Um dos efeitos colaterais mais relevantes da reforma é a ampliação objetiva da base de incidência. O IBS e a CBS adotam uma definição ampla de operação com bens e serviços — e passam a tributar situações que hoje estão fora do alcance ou são objeto de controvérsia administrativa e judicial.
Contratos que envolvem, por exemplo, locação, mútuo, arrendamento, precisarão ser revisados com cuidado. Operações estruturadas com foco na não incidência podem perder sua eficácia — ou passar a gerar obrigações tributárias que afetam diretamente o custo da transação e o equilíbrio econômico da relação.
A depender do modelo contratual atual, a mudança pode transformar uma operação neutra em um fato gerador pleno. E se essa hipótese não estiver prevista, o passivo surgirá em nome de quem não esperava — ou não contratou.
Por isso, a revisão contratual precisa considerar não apenas o que já é tributado, mas também aquilo que passará a ser tributado sob a nova legislação.
A reforma não é surpresa — e não pode ser tratada como fato novo
Um ponto essencial, muitas vezes negligenciado, é que a reforma tributária não poderá ser invocada como fato imprevisível para fins de revisão contratual ou rompimento por força maior.
Tanto a Emenda Constitucional nº 132/2023 quanto a LC nº 214/2025 são normas públicas, de amplo conhecimento, e já em vigor. O conteúdo da transição tributária — incluindo o fim de incentivos, a nova base de cálculo, a não cumulatividade condicionada e a mudança do local de incidência — é um fato jurídico conhecido e projetável. Portanto, qualquer contrato celebrado a partir de agora deve levar essas mudanças em consideração.
A omissão contratual sobre esses pontos será interpretada como risco assumido pelas partes. O Poder Judiciário e os tribunais arbitrais tenderão a entender que a reforma não configura imprevisibilidade ou onerosidade excessiva — especialmente porque os efeitos são graduais e podem ser quantificados.
Por isso, é indispensável incluir cláusulas que:
- reconheçam a reforma como evento normativo já vigente;
- distribuam o risco das mudanças previstas;
- regulem os impactos sobre preços, margens e obrigações de performance.
A alegação futura de surpresa ou desequilíbrio sem cláusula contratual de suporte será, na prática, uma fragilidade da parte que deixou de prever o óbvio.
Mapeamento do negócio: o passo anterior ao contrato
Antes mesmo de revisar cláusulas ou renegociar condições, o primeiro movimento técnico exigido pela reforma é o mapeamento detalhado do negócio. Isso significa identificar como cada processo, operação e estrutura contratual da empresa será afetado pela transição do sistema tributário.
É necessário compreender:
- quais unidades da empresa operam com incentivos que serão extintos;
- quais contratos têm margens sustentadas por créditos presumidos ou regimes especiais;
- onde há risco de inadimplemento fiscal do fornecedor e consequente glosa de crédito;
- quais fluxos operacionais exigirão adaptação à nova lógica de local da operação, cálculo por fora e adimplência como condição para creditamento.
Esse diagnóstico é o que dá fundamento à modelagem jurídica e contratual — e sem ele, qualquer revisão de cláusulas será incompleta. Contratar bem, agora, depende de conhecer profundamente onde o tributo incide e como ele circula dentro do modelo de negócio.
Conclusão: a reforma exige contratos novos — não apenas cláusulas novas
A magnitude da reforma tributária exige mais do que aditivos. Exige uma nova forma de redigir, negociar e executar contratos. As partes precisam assumir responsabilidades fiscais com clareza, prever as novas formas de apuração, lidar com o fim dos benefícios pulverizados e se proteger das incertezas da transição.
Trata-se de proteger a relação jurídica em sua totalidade — e evitar que ela seja desfeita por uma legislação que mudou sem esperar pela adequação contratual.
A hora de agir é agora. A reforma não virá — ela já chegou. E os contratos precisam acompanhá-la.