Muito se tem falado sobre o Split Payment, mas a realidade é mais profunda: a reforma tributária representa uma reengenharia completa na forma como o Brasil administra a tributação sobre o consumo. E seu impacto vai muito além da simplificação ou da extinção de tributos antigos.
Estamos diante da desconstrução de um sistema baseado em informalidade tolerada, guerra fiscal e pulverização de obrigações acessórias. O novo modelo é digital, automatizado e integrado. E está sendo construído sobre três pilares centrais:
- A Emenda Constitucional nº 132/2023, que reformulou o sistema tributário sobre o consumo no plano constitucional.
- A Lei Complementar nº 214/2025, que regulamenta os tributos (IBS, CBS e IS), regras de apuração, créditos, não cumulatividade e base de cálculo.
- A infraestrutura tecnológica coordenada pelo SERPRO, que traz ao centro – ROC – Registro de Operações de Consumo e o sistema de Split Payment.
1. ROC e Split Payment: o desenho técnico do novo sistema
Recentemente, o SERPRO (Serviço Federal de Processamento de Dados) divulgou, por meio de apresentações institucionais, as primeiras informações oficiais sobre a plataforma tecnológica que sustentará o novo modelo tributário. O material integra a fase de testes e validação técnica que ocorre entre 2024 e 2025, e revela a estrutura do sistema que será progressivamente implementado até 2026.
O coração dessa arquitetura é o ROC – Registro de Operações de Consumo.
Esse sistema, ainda em desenvolvimento, será responsável por conectar três dimensões de uma mesma operação:
- A operação fiscal (emissão/autorização da nota fiscal);
- A operação financeira (pagamento via PIX, cartão, boleto, etc.);
- A operação tributária (apuração e recolhimento do imposto via Split Payment).
Na prática, o ROC atuará como uma base unificada que registra e vincula todos os elementos essenciais da transação. Ao identificar o CPF ou CNPJ do adquirente e cruzar com os dados fiscais e financeiros, o sistema poderá confirmar, em tempo real, se a operação está regular — e acionar automaticamente o recolhimento do IBS e da CBS.
O projeto do SERPRO envolve, ainda, os seguintes módulos:
- Motor de regras tributárias (definindo o tratamento fiscal de cada operação);
- Apuração assistida;
- Cashback vinculado ao CadÚnico;
- Ambiente de processamento em nuvem soberana;
- Portal da Reforma, com acesso a contribuintes e administrações tributárias.
Trata-se de uma ruptura com o modelo declaratório, baseado na iniciativa do contribuinte. O novo sistema recolhe, cruza e valida antes mesmo de o contribuinte perceber.
2. Crédito condicionado ao recolhimento: quebra da presunção de adimplência na cadeia
O art. 47 da Lei Complementar nº 214/2025 introduz uma mudança significativa na lógica de aproveitamento de créditos dos tributos sobre o consumo: o adquirente somente poderá se creditar do IBS ou da CBS se o imposto tiver sido efetivamente recolhido pelo fornecedor.
Essa exigência rompe com o modelo atualmente praticado no Brasil, no qual a apropriação do crédito se dá com base na regularidade formal do documento fiscal, independentemente de o tributo ter sido recolhido ou não na etapa anterior. Até então, o sistema partia de uma presunção de adimplência, permitindo ao contribuinte apropriar o crédito desde que a nota estivesse corretamente emitida e escriturada.
Com a nova regra, essa presunção deixa de existir. O direito ao crédito passa a ser condicionado a um evento externo ao adquirente: a efetiva arrecadação do imposto pelo fornecedor, conforme será validado em tempo real pelo sistema unificado da Receita Federal e do Comitê Gestor.
Na prática, isso transfere ao adquirente a responsabilidade de diligenciar sobre a conformidade fiscal da sua cadeia de suprimentos, pois a não arrecadação pelo fornecedor implicará a glosa do crédito — ainda que todos os requisitos documentais estejam formalmente atendidos.
Esse novo cenário impõe uma revisão profunda de políticas de compras, cláusulas contratuais e rotinas de verificação tributária, além de aumentar a importância de tecnologias de compliance fiscal integradas ao ambiente digital da reforma.
Em resumo, temos três pontos importantes:
- Revisão de políticas de compras e contratos com fornecedores;
- Monitoramento de adimplência tributária da cadeia;
- Novas cláusulas de responsabilidade fiscal nos negócios B2B.
3. Comitê Gestor e centralização da fiscalização
O PLP 108/2024, já em tramitação avançada no Congresso Nacional, cria o Comitê Gestor do IBS (CG-IBS) — um órgão nacional, independente e federativo, que concentrará a administração do IBS, inclusive:
- Arrecadação unificada;
- Interpretação normativa única;
- Julgamento administrativo padronizado;
- Compartilhamento de dados com as administrações tributárias federal, estaduais e municipais.
Essa estrutura extingue a fragmentação histórica entre as esferas federativas e aumenta a capacidade de fiscalização com padrão único, cooperação ativa e controle centralizado em tempo real.
4. Da possibilidade à inviabilidade técnica da sonegação
O modelo tradicional de evasão fiscal no Brasil se apoiava em três pilares:
- Autodeclaração;
- Desconexão entre emissão fiscal e pagamento;
- Fiscalização posterior, parcial e local.
O novo modelo, com ROC, Split Payment e Motor de Regras, desfaz esses pilares. A arrecadação será automática, a fiscalização será prévia e o risco fiscal se manifesta no momento da operação.
Com isso, práticas antes toleradas ou de difícil detecção — como omissão de receita, subfaturamento, inadimplência intencional ou crédito fictício — tornam-se não apenas arriscadas, mas tecnicamente insustentáveis.
Conclusão
A divulgação das primeiras bases tecnológicas do novo sistema tributário pela Receita Federal e pelo SERPRO deixa claro:
não se trata apenas de uma mudança de legislação, mas de um redesenho completo da infraestrutura de arrecadação no Brasil.
O ROC, o Split Payment e a apuração assistida criam um sistema que integra o documento fiscal, o pagamento e o recolhimento de tributo em um único fluxo automatizado, auditável e em tempo real. A função fiscal se desloca da declaração posterior para o registro instantâneo da operação.
Esse modelo elimina a lacuna operacional que permitia a evasão, deslocando o risco fiscal para o momento da transação e vinculando diretamente o direito ao crédito ao recolhimento prévio do imposto.
A consequência direta é que práticas empresariais antes sustentadas por margens artificiais, construídas sobre omissão, informalidade ou postergação do pagamento, deixarão de ser viáveis — não por imposição legal, mas por inviabilidade técnica.
Diante disso, as empresas precisam repensar sua operação sob três dimensões fundamentais:
- Conformidade sistêmica: a cadeia de fornecimento precisa ser monitorada e auditada sob risco de perda de créditos e autuações em cascata.
- Processos e TI fiscal: a integração com o novo ambiente digital exigirá mudanças profundas nos sistemas de emissão, controle de pagamentos, e escrituração.
- Formação de preços e margem: com todos os agentes recolhendo corretamente, a precificação terá que refletir a carga tributária real — e as ineficiências não poderão mais ser absorvidas informalmente.
Portanto, o verdadeiro impacto da reforma não está apenas na extinção do ICMS ou do PIS/COFINS, mas na introdução de uma nova lógica operacional, que exige planejamento, reestruturação e, sobretudo, antecipação.
A nova pergunta estratégica que precisa ser feita já não é mais “como pagar menos tributo?”, mas sim:
“Como estruturar minha operação para ser viável em um ambiente de total transparência tributária?”